“…O que acontece leva tal dianteira
sobre o que supomos, que nunca o alcançamos
e nunca chegamos a saber como foi realmente. (…)"2

 

“…I thought that I heard you laughing / I thought that I heard you sing / I think I thought I saw you try / But that was just a dream / That was just a dream”. 3

 

 

Ao longo de 7 anos portugueses (iniciados, em ritmo de vida esparso, desde 1998...), o curador brasileiro Paulo Reis nadou um "oceano inteiro" encontrando, para aqueles que conheceu, novas lutas e conquistas: os artistas, suas ideias e obras. Acedeu à unidade, pois que obra (de arte) era igual a vida, sendo casa dele mesmo. Pinturas, fotografias, objetos e desenhos iam agarrando nas paredes, iluminando. Em tempos idos, Studiolo, Wunderkamera, Gabinet d’Amateur ou Curiosités (salvaguardada a diferença)recheavam-se de espanto e sedução para quem reunia objetos diversificados em ambiente intimista e entabulava uma espécie de Conversation Piece …essa fala privada. Depois de si mesmo, esses recoletores – outrora, os príncipes, reis, inteletuais ou artistas – deixavam que suas obras fossem olhadas pelos demais e a história continuou. No caso, veja-se esta exposição como a sala de casa, onde entre os artistas, que de mais próximo acompanharam Paulo Reis, se fez uma escolha, partindo de obras da sua coleção até às peças cedidas pelos próprios (que nela não estão representados) para a ocasião. É uma mostra de quanto acreditar-se na Arte em todas as horas.

 

Depois do “Preâmbulo” de uma vinda que anunciava ser por muito tempo, seguiria a duração, exceto se fosse impedida por um mar que “… está sempre em movimento para não sair do lugar.” Pois que: “Se o mar saísse do lugar teríamos de mudar os mapas.”4

 

Mar em movimento, definitivamente barroco foi o mais propício, ornamentado por luz a plenos pulmões, através de uma janela em fim de tarde. O mapa mudou; lendo viu essas luzes abertas pela Casa – uma poética do espaço na arte brasileira, projeto que falou seria seu canto de cisne no Brasil. Refiro-me à exposição coletiva, inaugurada em Outubro de 2004, no Museu Vale do Rio Doce (Espírito Santo), poucas semanas após a realização do Encontro Luso-Brasileiro de Crítica e Teoria da Arte que Paulo Reis organizara no Rio de Janeiro, em Setembro desse mesmo ano. Nesse evento reuniu mais de 20 críticos, historiadores e teóricos de ambos países, de diferentes gerações e manifestando posturas e perspetivas múltiplas.

“…Nossa visão curatorial se fundamenta nos argumentos bachelardianos dos espaços perscrutados por este: do porão ao sótão, a casa e universo, a gaveta, os cofres e os armários, o ninho, a concha, os cantos, a miniatura, a imensidão humana, a dialética do exterior e do interior e a fenomenologia do redondo. Estas são as possibilidades plásticas, nem sempre literais, mas sugestões de intersecções entre vida e o fazer artístico.” 5

 

Entre referências de Bachelard, deambulando por noites de insónia filosófica e crítica, estabeleceu esses cantos, cofres, porão, gavetas…, todos os ínfimos lugares de uma poética do espaço, aquelas coisas pequenas que deveriam preencher o humano, parafraseando Nietzsche…

 

“A casa não é somente o arquétipo arquitetônico, mas o de posição cultural do homem para se diferenciar de sua natureza. Na mitologia, o inventor mítico da arquitetura é Dédalo que construíra a moradia do Minotauro, e do qual sabia fazer moverem-se as estátuas por si só. (…)”6

 

Na casa efetiva deste curador organizavam-se, carinhosamente, as peças que hoje se contemplam no presente display, algo intimista, onde faltam o sofá azul alfazema e a cadeira de napa esbranquiçada... A luz, à semelhança do nº38 da rua da Paz - 1º dir., entrará nalguns dias de Inverno que se aproxima, pela porta da varanda, cujas portadas de madeira permaneciam quase sempre abertas. Goethe, segundo se sabe, ao morrer, teria pedido “Licht, mehr Licht”… No caso, Paulo sempre viveu e quis mais e mais luz (fosse lux, splendor ou lumen…) Esse submergir na Luz, corporalizou-se em duas curadorias Lumen7 - criações artísticas para a cidade do Rio de Janeiro, 2009), Fiat Lux (MACUF, A Corunha, Abril 2010).

 

A convivialidade de obras, pessoas desenvolvia-se, de forma privilegiada e genuína, através dos afetos gastronómicos, convertidos em símbolos distintivos da força da amizade expandida, e que, nos leva agora, a experimentar um imenso sentimento de amigo partilhado entre tantos e tantos…que lhe confere maior completude e força.

 

“…O todo é estável dentro

Da instabilidade, um globo como o nosso, pousado

Sobre um pedestal de vazio, uma bola de pingue-pongue

Segura num jacto de água. (…)”8

 

Num exercício que, por vezes, era de uma certa errância organizada, com destino determinado, a fixação a Portugal, através de Lisboa foi determinante. As viagens foram cumpridas com regularidade (em percentagem significativa de humor e ironia), essas vindas ao Porto, tornaram-se uma espécie de vício nómada regularizado q.b. Criou ritmos de vida, por analogia, ao consignado por Michel Maffesoli… um dos seus autores emblemáticos, mediante cujas leituras, decidiu o título da curadoria emblemática na PARALELA de 2010 – Contemplação do Mundo: nada de mau se perdeu / nada de bom foi em vão / uma luz ilumina tudo / mas deve haver mais”. Arseni Tarkovski.

Apesar de um certo desprendimento nutrido pelo supérfluo, pelas coisas em excesso, Paulo Reis concebeu a sua casa depois de uma mostra visionária com a qual de despediu do Brasil – como acima aludi. Talvez, por isso mesmo, nessa confluência de territórios que são os do real e do imaginário, a casa fosse o lugar de reserva e de permanência. Pois de duração se tratou a sua estadia em Portugal. Frequente, pensava na duração como algo subjacente a um pensamento teórico de conciliações ao transitório e passageiro: com uma consciência atualizadíssima sobre os fatos, destinos e ações das artes e da cultura portuguesas, brasileiras, europeias expandindo-se por conhecimentos a nacionalidades mutlculturais com um olhar imparcial e justo. A arte não tinha sentido para o curador brasileiro, se não confrontasse artistas (enquanto produtores mas também enquanto recetores) e os públicos com as situações e as causas da humanidade em agitação no mundo. Assim, o que entendeu por obras e artistas configurou todo um universo de argumentos, reflexões e interrogações constantes que se desenvolvem (e enredaram) nas mais atuais e aguerridas discussões sobre políticas e dinâmicas culturais, atendendo à pluralidade das artes. Tal assunção não invalidava a convicção da postura singularizada, identitária antes consolidava aquilo que Paulo entendia ser missão dos distintos agentes - operadores estéticos, diria Zé Ernesto de Sousa.

Seguindo os princípios estéticos de Klein, Manzoni e Beuys, subsumidos às leituras de ordem filosófica e de história e crítica de Arte, na sua escrita própria – cujos textos se pretendem reunir em volume, Paulo Reis desenvolveu reflexões onde razão e sensibilidade se tornaram cúmplice e, onde se afirmavam suas afinidades eletivas. Num e outro caso, estes termos corresponderam, aliás, a títulos que atribui, respetivamente, a uma curadoria realizada no Brasil e ao título de um texto publicado na revista da Arco em 2006 (incidindo sobre a obra de Jan Fabre).

Lucidez e exigência presidiram sempre a suas causas e atuações sobrepondo-se ao seu bem-estar, interesse particular ou ambição, dirigindo a configuração de seu pensamento, procedimentos e desígnios. A sua coerência foi constante até ao fim, garantindo uma qualidade de desempenho que viabilizou a concretização dos múltiplos projetos que gizou, fundou e implementou, bem como daqueles em que colaborou ou participou.

“Um mundo de coisas que passam. (…) Tudo muda sem parar.

Não há nada estável.”9

 

Não obstando a óbvia pertinência afirmativa de que as mentalidades se movimentam, as convicções persistem, sendo ritmadas pela capacidade que, algumas pessoas possuem para rever, atualizar, (eventualmente) subverter e/ou consolidar identidades e seus produtos. A dinâmica barroca foi consignação transversal, superando inoperâncias, contrariedades ultrapassadas e questiúnculas obsoletas, advindas do exterior… tudo aquilo de que Paulo Reis soube apoderar-se, falando (com frequência) que o NÃO, para ele, exercia mais efeito de persistência que o SIM.

Em epígrafe, ao texto relativo à mostra Sal da Terra (Museu Vale do Rio Doce, 2003), Paulo relembrou Gotthold Lessing, em Laocoon. Recuperando essa sua decisão de escrita, acentua-se a perseverança de um agir que cada um deve cumprir devendo estender-se a outrem para além do instante e para a duração:

 

“Todos os corpos, entretanto, existem não apenas no espaço mas também no tempo. Eles continuam e podem assumir, a qualquer momento de sua continuidade, um aspecto diferente e colocar-se em relações diferentes. Cada um desses aspectos e agrupamentos momentâneos terá sido o resultado de um anterior e poderá vir a ser a causa de um seguinte, constituindo, portanto, o centro de uma ação presente”.10

 

Então, por anuência à sua fidelidade à vida, não se esqueça que:

 

“A alegria verdadeira não tem explicação possivel, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o inicio de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom – como se morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos - pois a vida nascendo.”11

 

 

Maria de Fátima Lambert

Nov./dez.2011

 

 

*Texto para a exposição Passante no mundo – Paulo Reis & Cª (QuaseGaleria, Porto, dez. 2011/ fev. 2012)

 

 

MARIA DE FÁTIMA LAMBERT é curadora e crítica de arte.


1 “Para ti, para que não penses que o dedico a outro.” Parafraseando Almada Negreiros.

2 Rainer Marie Rilke, “Livro Primeiro – Livro da vida monástica” (1899) in Poemas – as elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, Lisboa, Oiro do Dia, 1983, p.139

3 R.E.M. – Losing my Religion, transcrição de excerto da epígrafe ao texto com o mesmo título, de Paulo Reis e correspondendo à sua Curadoria, realizada para a “Ermida da Senhora da Conceição”, Lisboa, Janeiro de 2009.

4 Arnaldo Antunes, Antologia, V.N.Famalicão, Quasi, 2006, p.58

5 Paulo Reis, excerto da proposta curatorial para a Mostra acima mencionada - texto enviado a 14.03.2004.

6 Paulo Reis, “Casa – uma poética do espaço na arte brasileira”, in Catálogo da Mostra, Museu Vale do Rio Doce, Vitória (ES), Outubro 2004.

7 “A mostra Lúmen pretende assim abrir uma discussão sobre as diferentes possibilidades que a energia elétrica pode ter no cotidiano das pessoas, seja no uso diário de eletrodomésticos até a concepção de obras de arte. Através de suas instalações, estes artistas mostram assim a dinâmica atual das pesquisas com a luz no contexto artístico mundial.” Paulo Reis in Texto para o projeto referido.

8 John Ashbery, Auto-retrato num espelho convexo e outros poemas, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, p.167

9 Nelson Brissac Peixoto, Cenários em ruínas – a realidade imaginária contemporânea, Lisboa, Gradiva, 2010, p.137

10 Citava, igualmente Mateus, cap. 4, ver. 5: “Vós sois o sal da terra”. Nessa argumentação longa e aprofundada, imperdível para a boa compreensão da arte brasileira contemporânea, sob um recorte perspicaz e sólido, Paulo Reis explanava termos incontornáveis que, posteriormente, teriam continuidade no rigor da pesquisa subjacente a tida a sua praxis como autor, programador e curador.

11 Clarice Lispector – A Descoberta do Mundo, 23 novembro de 1968, p. 227.